Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
(Vai passar, Chico Buarque)
Quanto tempo dura uma construção ideológica? Haverá condições de análise histórica ou sociológica para verificarmos os impactos que uma concepção política deixa ao longo do tempo em um país? O que e quanto do caldo autoritário de 64, arquitetado paulatinamente em anos anteriores, constatamos no Brasil de hoje? Seriam as manifestações dos últimos anos fruto do rescaldo que sobrou da queima da democracia durante o golpe militar? Sim e não. Creio que em grande medida houve uma permanência histórica, mas ela não é exatamente o conjunto de sentimentos e expressões que as elites brasileiras dos anos 60 nutriam. Talvez boa parte dessas elites efetivas do grande capital não tenham mais interesse em golpes. Os acontecimentos recentes, relativos ao 8 de janeiro, revelam que o custeio da invasão dos três poderes foi realizado por “empresários” de médio e pequeno poder econômico. Resta saber por qual razão parte dos “de baixo” ainda adere aos apelos autoritários e antidemocráticos.
Em parte, o projeto da manutenção ideológica é, de fato, sustentado por camadas economicamente superiores, que tentam pautar as politicas segundo seus interesses. Daí, por exemplo, os problemas oriundos da formação escolar, em que a cidadania plena, relegada a segundo plano dos objetivos maiores de um projeto de educação para o país, passa ao largo das efetividades pedagógicas. Ao menos há derivações culturais que explicam parte dessa adesão das camadas pobres aos discursos antidemocráticos.
No entanto, também nem toda “camada popular” é afetada pelos desatinos políticos. Existe também no seio da sociedade brasileira, grupos e pessoas que se articulam, nos bairros, nas igrejas, nos sindicatos, nos partidos e movimentos sociais, bem como na vida pessoal, nos estudos, no trabalho, ajudando a sustentar um quadro de esperanças e utopias de um “todo comum” em que as diferenças sejam consideradas.
Nunca é tarde para nos lembrarmos de alguns nomes. Alexandre Vannucchi Leme, Vladimir Herzog, Santo Dias da Silva, Edson Luis de Lima Souto, Djalma Maranhão, João Bosco Penido Burnier, Manoel Fiel Filho, Maurício Grabois, Nativo da Natividade de Oliveira, Pedro Pomar, Rubens Paiva, Stuart Angel Jones, Frei Tito de Alencar Lima, Zuzu Angel. São apenas alguns dos nomes dos quase 400 mortos e desaparecidos durante o regime militar. Neste rol de pessoas, encontramos professores, ativistas políticos, cientistas, jornalistas, operários, estudantes, donas de casa, agentes de pastoral, religiosos, cineastas, fotógrafos, nem todos ligados a organizações políticas.
A comissão da verdade colocou à luz as atrocidades do regime e os efeitos desumanos do golpe de 1964. Essa “página infeliz da nossa história”, como diz Chico Buarque, haverá de ser virada definitivamente.
Texto por José Renato Polli
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