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Um futuro melhor não é abstrato: Brasil, quilombismo e o 20 de novembro


No dia 20 de novembro temos uma data para relembrar as lutas dos movimentos negros pelo fim da opressão provocada pela escravidão. Essa data refere-se à morte de Zumbi, importante líder do Quilombo dos Palmares, situado no Nordeste do Brasil. O Dia da Consciência Negra ressalta as marcas prevalentes na sociedade brasileira pelos quase 350 anos de duração da escravidão e do tráfico ativo das populações negras da África para o Brasil. Desde que os primeiros africanos chegaram ao Brasil e foram vendidos como escravos, existe resistência. Os quilombos, locais de refúgio, surgiram a partir de meados de 1575 e continuaram existindo mesmo após a abolição da escravatura.

Apesar dos 134 anos da lei que deu fim à escravidão, o racismo continua presente nas estruturas sociais e institucionais deste país e é manifestado pela falta de oportunidades para pessoas negras, por baixa remuneração, pelas tentativas de apagamento da cultura e da participação africana na construção da nação brasileira e pelo epistemicídio acadêmico de negros e negras, entre outras formas de apagamento e de violência. O Dia da Consciência Negra é uma tentativa de destacar e de estimular o debate sobre essas desigualdades permanentes, além de celebrar a contribuição do povo negro para a cultura, a ciência, a economia e a política do Brasil. Dessa forma, é importante ressaltar conquistas das comunidades negras, especialmente no que concerne às ações afirmativas que têm sido implementadas.

A Constituição brasileira, de 1988, de cuja construção vários atores da sociedade, incluindo os movimentos negros, participaram ativamente, traz medidas importantes para a promoção de reparações à comunidade negra. Destacamos a lei que definiu os crimes de preconceito de raça ou cor (nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989), surgida a partir dos novos princípios constitucionais, e a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, voltada para a educação básica, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras. A Constituição garante igualdade, o Código Penal prevê punições a racistas, mas a população preta e parda ainda têm salários mais baixos, são maioria entre as vítimas fatais de ações da polícia e minoria em cargos de liderança. Essas são legislações reparatórias, mas ainda precisamos avançar em ações afirmativas que contemplem maior presença negra em todos as esferas sociais.

Fruto da pressão do movimento negro, a criminalização do racismo ocorreu em 1988, após o Plenário da Constituinte aprovar a emenda do deputado federal Carlos Alberto Caó de Oliveira, um homem negro, que definiu o racismo como crime inafiançável e imprescritível. No dia 28 de outubro de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que injúria racial também passaria a ser um crime imprescritível, ou seja, passível de punição mesmo décadas depois. O Código Penal determina que injúria racial é a ofensa a qualquer pessoa por sua raça ou cor, com intenção de ofender a honra da vítima. Já o crime de racismo é cometido quando a ofensa for contra um grupo ou coletividade.

Há uma década, a Lei nº 12.711/2012, de reserva de vagas, assegurou o acesso ao ensino superior nas universidades federais e ao ensino médio nas instituições federais de ensino para estudantes negras e negros. Essa lei produziu importante contribuição para que um grande contingente de jovens negras e negros alcançassem novas perspectivas de vida e de trabalho. Como previsto no seu próprio texto, essa lei passará por revisão. Os resultados obtidos tanto para as universidades quanto para a sociedade permitem defender a continuidade da reserva de vagas e o aperfeiçoamento da Lei nº 12.711/2012, a fim de que seja assegurado não somente o ingresso, mas a permanência dos estudantes na universidade, para que consigam concluir sua trajetória acadêmica com qualidade.

Em 1999, a cada 100 estudantes das universidades brasileiras, 15 eram negros. Vinte anos depois, são 46 negros a cada 100, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep). A Lei de Cotas, de agosto de 2012, é uma das grandes responsáveis por esse avanço. Ela determina que as 69 universidades federais e os 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia reservem no mínimo 50% das vagas para estudantes que concluíram o ensino médio em escolas públicas. Dentro da reserva de cotas, as vagas devem ser preenchidas por estudantes autodeclarados pretos, pardos, indígenas e por pessoas com deficiência.

Precisamos, então, continuar a reafirmar nosso compromisso com a luta pelo fim de todos os tipos de desigualdades sociais, em especial pelo fim de qualquer forma de racismo. E que, em todas as ações, sejam elas institucionais ou individuais no nosso dia a dia, possamos colocar em prática esse compromisso tão importante para que tenhamos uma sociedade mais justa e igualitária, com a inclusão de fato da comunidade negra em todos os espaços universitários e sociais.

Conscientes da extensão e profundidade dos problemas que enfrenta, o negro sabe que sua luta não está limitada a pequenas reivindicações de caráter empregatício ou de direitos civis, numa sociedade capitalista-burguesa. O negro luta contra todas os componentes do sistema ou estrutura vigente, inclusive ima ideologia da opressão promovida através da teorização "científica" seja de sua inferioridade biossocial, da miscigenação sutilmente compulsória ou da criação do mito "democracia racial". Essa "intelligentsia" fabricou uma "ciência” histórica que ativamente contribuiu para a desumanização dos africanos e seus descendentes, com o intuito de servir os interesses do projeto colonial eurocentrista, racista e opressor.

Um futuro melhor não é abstrato, mas sim exige uma realidade em termos concretos - de pão, moradia, saúde, trabalho – assim como de componentes mais sensíveis da personalidade negra expressas em sua religião, cultura, história, costumes e outras formas. A segurança de um futuro melhor para a população negra não se inclui nos dispositivos da chamada "lei de segurança nacional". Esta é a segurança das elites dominantes, de uma “ordem” econômica, social e política em vigor é aquela associada e inseparável das teorias “científicas" e dos parâmetros culturais e ideológicos engendrados pelos opressores e exploradores tradicionais da população afro-brasileira.

Um instrumento conceitual operativo se faz necessário, indicando a demanda da sistematização e interpretação da experiencia do negro, possibilitando tirar desse ato todas as lições teóricas e práticas conforme a perspectiva exclusiva dos interesses da população negra e de sua respectiva visão de futuro - ciência histórico-humanista do quilombismo. Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa no progresso humano e sociopolítico em termos de igualitarismo econômico.

Um futuro de melhor qualidade para a população afro-brasileira só pode ocorrer pela organização e mobilização coletiva, tanto da população negra como das inteligências e capacidades escolarizadas, por uma criação teórico-científica material e contextualizada. Uma teoria científica fundida à prática histórica que efetivamente combata ao apagamento e extermínio sistematizado da comunidade negra. Esta tensão, capaz de mobilizar e modificar o tecido social, necessariamente consubstancia a essência e o processo do quilombismo. Assegurar a condição humana do povo afro-brasileiro, há tantos séculos tratado e definido de forma humilhante e opressiva, é o fundamento ético do quilombismo. Deve-se assim compreender a subordinação do quilombismo ao conceito que define o ser humano como o seu objeto e sujeito científico, dentro de uma concepção de mundo e de existência na qual a ciência constitui uma entre outras vias do conhecimento.


Giovana Shimoda Baptista


Referência:

O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. 2. ed. Brasília / Rio de Janeiro: Fundação Palmares / OR Editor Produtor, 2002.


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